segunda-feira, dezembro 25, 2006

Natal


Alegoria de um Natal Americano - Salvador Dali, 1943




Natal

Hoje é dia de era bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças, de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse, numa toada doce, de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)


Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.


Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito, ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores. É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito, como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.



A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento. Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar. E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprado.



Mas a maior felicidade é a da gente pequena. Naquela véspera santa a sua comoção é tanta, tanta, tanta, que nem dorme serena.

Cada menino abre um olhinho na noite incerta para ver se a aurora já está desperta. De manhãzinha, salta da cama, corre à cozinha mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza da matutina luz aguarda-o a surpresa do Menino Jesus.


Jesus o doce Jesus, o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho do Pedrinho uma metralhadora.
Que alegria reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas, fuzilava tudo com devastadoras rajadas e obrigava as criadas a caírem no chão como se fossem mortas: Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está! E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá fingiam que caíam crivados de balas.
Dia de Confraternização Universal, Dia de Amor, de Paz, de Felicidade, de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal. Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

António Gedeão




...uma pausa por terra de nuestros hermanos , até Janeiro, Boas Festas a todos...

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