sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Resignatário mas não Resignado...

D. MANUEL Martins num dos bairros pobres de Setúbal,
durante a crise dos anos 80

...nesse tempo de 1981 a 1982, a Lisnave sofre o embate de um novo choque petrolífero e uma crise de encomendas que levaria ao pagamento de salários em atraso ao longo de quatro de anos. As cargas policiais, as bandeiras negras, o leite que então nos começa a ser distribuído na escola primária...

Classe do 4º Ano - 1983 - Escola Primária António José Gomes (Cova da Piedade -Almada)


No tempo das bandeiras negras

Em 1975, foi nomeado primeiro bispo de Setúbal. Enfrentou o Verão Quente, chamaram-no «bispo vermelho», porque se pôs, desde o início, do lado dos pobres. «As pessoas rotulavam-nos assim quando tomávamos o partido dos que não tinham nada». Apenas seguiu, diz, o caminho natural da Igreja.

D. Manuel Martins resignou ao cargo em 1998 e voltou à sua casa, em Leça do Balio (Porto). Sempre foi reconhecido como voz dissonante do poder. As funções episcopais de que fora incumbido confundiram-se com a sua vivência na península de Setúbal. «Nasci bispo neste caldeirão», recorda. Hoje, com 76 anos, dedica-se a outras causas, mas a memória daqueles tempos está viva. Desde o início percebeu o que tinha de fazer em Setúbal: «Deus fez-me logo ver que a minha missão era estar com esta gente, emprestar a minha voz a quem não a tinha».

D. Manuel foi testemunha privilegiada da grave crise que se abateu sobre o distrito em meados dos anos 80. Na altura, encerraram dezenas de fábricas, entre as quais a Renault, e a população viu-se perante a carência absoluta. A situação alastrou-se mesmo a quem estava empregado. O problema dos salários em atraso entrava no léxico da crise.

Com as primeiras manifestações, surgiram as bandeiras negras, símbolo da fome. Mas a resposta oficial foi outra: «Altos responsáveis do país chegaram a dizer que a fome em Setúbal era o bispo que a criava, pois que fome a sério seria a do Biafra e não sei de onde mais».

No entanto, D. Manuel continuava no terreno. Convocou diversas entidades, no país e no estrangeiro e conseguiu um fundo de solidariedade, diz, «que matou a fome a muita gente, enxugou muita lágrima e resolveu muitas aflições no tocante a prestações de habitação». Lembra-se de várias famílias a quem foram pagas rendas de casa enquanto durou o desemprego, entre muitos outros casos. O governo seguiria os mesmos passos mais tarde, apesar das reticências iniciais. E a mobilização foi geral, com o recurso à Caritas e às comunidades paroquiais de todo o distrito. D. Manuel tinha, finalmente, conseguido fazer ouvir a sua voz, sempre com muita frontalidade. A sua militância valeu-lhe, entretanto, alguns «avisos». Perguntaram-lhe, certa vez, se ainda não se tinha lembrado «de ter cuidado» com o que andava a fazer.

Para o bispo, a reincidência da pobreza em Setúbal tem a ver com a implantação de um sistema de «filosofia económica hiperliberal» não só no distrito mas em toda a Europa. Além disso, «será bom não esquecer que é uma terra altamente industrializada e, por isso mesmo, será sempre uma zona de imigração interna», o que propicia situações de pobreza perante casos de dificuldade ou de «habilidades empresariais».

O legado de D. Manuel Martins já se traduziu em inúmeras homenagens no distrito e um pouco por todo o país. Chamaram-lhe «bispo resignatário mas não resignado» e «esperança de um povo», títulos de dois dos muitos livros que lhe foram dedicados. Mas não deixa de manter a modéstia, diz que foi levado, naturalmente, pelos acontecimentos: «Foi Setúbal que me fez», reconhece.

in Expresso

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