sexta-feira, fevereiro 17, 2006

A idade do degelo


Os mantos brancos recuam em vários pontos do globo

Apesar do surpreendente nevão em quase todo o País no último, domingo, 29, para um veterano do Centro de Limpeza de Neve da serra da Estrela existem duas mudanças no seu ofício: «Neva menos agora e faz menos frio», testemunha Armindo Martins, 48 anos, há 20 a varrer as estradas do maciço central. O que aumentou foi a inconstância dos elementos. Em 2003, as primeiras precipitações só chegaram em Março.
E, na última campanha, fez frio recorde nas instalações dos funcionários, em Piornos: menos 15 graus.

Se a serra da Estrela fosse hoje o que era em 1929, Armindo Martins teria trabalho para a maior parte do ano. Assinalava então o geólogo alemão Hermann Lautensach, no seu Estudo dos Glaciares da Serra da Estrêla, que a cobertura de neve começava a uma cota de 800 metros e que durava em média dois meses no Sabugueiro, cinco no Observatório Meteorológico das Penhas Douradas e oito e meio no planalto da Torre.

O histórico sobre precipitação de neve está algures num arquivo esquecido no Instituto de Meteorologia, mas outro geólogo, Gonçalo Vieira, que está a analisar alterações climáticas no maciço (embora a uma escala muito além da presença humana), reporta-se a medições nas Penhas Douradas para concluir que, no último século, a temperatura aumentou pelo menos um grau neste local. Ora, um grau é o necessário para que a cota de neve suba 150 metros.

Para um filho de Manteigas, como José Maria Saraiva, 55 anos, vice-presidente da Associação dos Amigos da Serra da Estrela e vigilante do parque natural com o mesmo nome, há sinais que soam a evidências, como o desaparecimento das neves permanentes, nos locais onde o sol nunca chega, ou o dos grandes nevões na sua terra natal, que «já não chegam aos 60 cm de antigamente».

O novo turismo de Inverno
A Agência Europeia de Ambiente já alertou para a perda de 10% da cobertura de neve no Hemisfério Norte, com uma aceleração acentuada desde 1980, superior a qualquer registo nos últimos cinco mil anos. A duração dos mantos brancos diminuiu, por seu lado, duas semanas num século. São más notícias para as reservas de água potável, para a subida do nível do mar, para a biodiversidade e também para o turismo: perto de 50% das estações de esqui na Suíça terão sérias dificuldades até 2050.

O mítico Kilimanjaro, na Tanzânia, ficou, em 2004, pela primeira vez em 11 mil anos, despido de neve. E os glaciares um pouco por toda a parte vão recuando – «uma evidência espectacular do aquecimento global», defende Filipe Duarte Santos, coordenador do projecto SIAM (Scenarios, Impacts and Adaptation Measures), o grupo que estuda as alterações climáticas em Portugal. Das nove regiões glaciares europeias, apenas a norueguesa está a aumentar, o que é ironicamente explicado pela desestabilização do clima na região do Árctico.

Não só os glaciares recuam como a maioria dos lagos glaciares dos Himalaias estão em risco de ruptura por não conseguirem reter um aumento descomunal da massa de gelo derretido. As catástrofes são agora mais frequentes no Nepal e no Butão, com riscos enormes de inundações e deslizamentos de terras para as populações que vivem a alturas mais baixas.

No vale glaciário de Manteigas há muito que não corre gelo. Mas, depois da desflorestação numa das suas vertentes, provocada pela pastorícia, e de uma arborização infeliz na outra, chegaram os desastres associados ao aquecimento global. No último Verão, José Maria Saraiva viu pela primeira vez a Ribeira de Beijames, um afluente do Zêzere, secar, bem como a Fonte Pires, a 1920 metros de altitude. Só faltava o fogo para levar o que restava das árvores e deixar uma encosta à mercê dos sedimentos que, agora, escorrem livremente para a estrada, arruinando um dos postais mais belos de Portugal.

Henrique Botequilha e Luís Ribeiro / VISÃO nº 674 2 Fev. 2006

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