Teimoso como um Sísifo voluntário, nenhuma mudez original é capaz de o impedir de tornar audível o que esta afirmação promete de tenacidade, concentração, serenidade e consciência de si. Ou não estivesse a serra por detrás dos seus gestos! Medieval e tosco na capela dos Ferreiros, em Oliveira do Hospital, ajoelhado e renascido em Góis, fidalgo descobridor em Belmonte, viajante na Covilhã, guerrilheiro em Midões, pastor e camponês em toda a parte, ninguém o pode ignorar, porque ele desce a viseira, ergue as mãos, iça a vela, caminha, aponta a carabina, levanta a enxada ou maneja o cajado, e grita:
Olhai vós bem que este sam eu!
De cima da sua fraga primária, espelha-se nas águas claras do Alva, do Mondego ou do Zêzere, três rios que lhe sulcam a alma de frescura, lirismo e persistência, e vê-se de rosto sereno, vagamente irónico e malicioso, pronto a ir governar a nação, indiferente ao riso desconfiado do Minho, ao ar carrancudo de Trás-os-Montes, à nostalgia alentejana e à reservada mudez algarvia.
Não é o brilho que o impõe, nem a honradez, nem a inteligência, nem outras qualidades que o português não tenha. É uma obstinação de caruncho, muda, modesta, inflexível, incapaz da piedade de ceder ao seu próprio cansaço. Mas essa teimosia dá-lhe o triunfo e a convicção de que só ele pode e deve conduzir os destinos da pátria inteira. Sem o dizer, sem o afirmar, o beirão sente-se dono de Portugal. Cingido até fisicamente às estremas da sua courela, herda, contudo, o sentido absorvente e centrípeto da mãe. E vá de inventar uma Beira transmontana, uma Beira alentejana, uma Beira estremenha e uma Beira Litoral, enquanto não se lembra de arquitectar uma Beira minhota e outra algarvia. Não há casal, dos inúmeros que se espalham pela serra fora como pequenos rebanhos de ovelhas, onde não tenha nascido um desses homens sem brilho, apagados e humildes, que começam a tocar pífaro sobre uma lapa, e que às duas por três estão no Terreiro do Paço de aguilhada na mão.
Mas o beirão mais castiço e simpático não é esse ambicioso de poder e mando, quase sempre tão limitado psicologicamente como os seus nativos horizontes. É o que fica agarrado às berças, sepultado nos abismos do seu Piódão neolítico, e que todos os anos sobe ao Colcorinho para cantar na Senhora das Necessidades a canção do seu destino, íngreme como as encostas onde cultiva a esperança. Toada que em nada lembra a que embala a Senhora do Almurtão, ou a que desperta o S. Bento da Porta Aberta — a Virgem insofrida das praganas da planície, e o Santo
entorpecido da longa hibernação da montanha. Não. A Senhora das Necessidades ouve uma canção singela, nem muito quente nem muito fria, moderada e discreta como a da fé do romeiro.
A' oliveira da serra
O vento leva a flor...
À parda e doméstica árvore do Horto da Agonia foi o beirão buscar o símbolo de uma evasão que o transporte e lhe respeite a inércia da raiz. A flor que vá, mas a tancha que fique.
Ó ai, ó linda, só a mim ninguém me leva,
Ó ai, ó linda, para o pé do meu amor!...
Sim, nem mesmo para junto da namorada. A natureza humana é fraca, e o Demo tem artes de perder um homem de mil maneiras. Por isso, o mais seguro é deixar-se estar, enquanto as pétalas aladas levam o queixume de uma solidão que, sendo um sofrimento da alma, é um gosto do corpo.
Amoroso dos valeiros que fabrica com seixos e suor em cada barroca onde passa um fio de água, neles pega de estaca e viceja. Mas o instinto de conservação pode mais do que as amarras que o seguram. E, se a fome aperta, que remédio senão abalar! Em colónias, que é o grande tipo de emigração beiroa, o irmão a chamar o primo e o primo a chamar o amigo, não há sítio no mundo onde não chegue o seu braço. Qualquer trabalho lhe serve. Os duma povoação são varredores, os da povoação vizinha engraxadores, os da seguinte barbeiros. Nada de aventuras sem garantia. O avô foi leiteiro na Califórnia, o filho herda-lhe o ofício e transmite-o ao neto. Saem já com o destino talhado. E ainda com a condição de terem a retirada coberta. Essa prudência, aliada a um bairrismo descabelado, tornam o beirão capaz de uma tal ubiquidade humana, que ao mesmo tempo que moureja na América colabora activamente na construção do fontanário da sua terra. Há juntas de melhoramentos duma aldeola que têm o presidente e os sócios a milhares de quilómetros, noutro continente.
E que riquezas o chamam à consciência terrunha, além da lição original e absorvente da serra ?
Quase nada. Algum remendo de centeio nas quebradas, meia dúzia de belgas de milho nos nateiros dos rios, quatro azeitonas, uns tonéis de vinho do Dão, a lã, o leite e a carne duns centos de ovelhas, um rebanho de cabras, duas trutas e um punhado de maçãs. Mas tudo isso o beirão multiplica com o seu amor. Do caldo de couves faz um manjar, do azeite uma tibornada, da lã churra um cobertor de papa, e da carne de cabra uma chanfana de endoidecer. Faz estes milagres sem grande imaginação, pouco poeta e pouco artista, mas hábil, engenhoso e prático. Duma agricultura sem grandeza consegue uma abundância regrada, saborosa, com tigelada no fim.
Também lhe não acena uma paisagem límpida e aberta. A não ser nos boqueirões e nos píncaros da Estrela, onde se desce ao inferno e se toca o céu, enrugada e morena, a natureza beiroa só de quando em quando se espraia e alegra. Dir-se-ia que uma limitação de tamanho e de posses limita também o arco-íris do cenário. É quase preciso cair inesperadamente sobre certos recantos para os surpreender na intimidade nua das suas horas felizes. Alguns trechos do Alva, pedaços do vale do Zêzere, curvas do Mondego — são imagens para não esquecer pela vida fora. E até caprichosos arranjos de casario, aqui e além, se não conseguem o pitoresco e a graça de bonitas aldeias escaroladas e gaiteiras do país, são duma rusticidade tão tocante que comovem por isso.
Pouco sensível à estética, o beirão não cuida da beleza dos seus burgos. Mas ela surge-lhe mesmo sem ele querer, como os coelhinhos brancos nas leis mendelianas. E temos Avô, Coja e Celorico, por exemplo.
Dessa pobreza artística que o marca, e da ingratidão dos materiais de que dispõe — nas zonas de xisto a inventiva pára automaticamente —, sofrem os monumentos as consequências. Uma ou outra igrejinha românica, às vezes de pedra rolada, como a de Arganil, a estátua orante ou jacente de algum fidalgo de antanho, um pelourinho desgarrado, um solar perdido nos confins duma quinta, uma sé gótica e pesada na austeridade da Guarda, um pormenor sobrevivente da grandeza passada de Viseu, é quase tudo. O que fica, e que o inventário do bricabraquista pode ainda descobrir, não se impõe como valor. É uma perna de santo aqui, uma cadeira sem palha acolá, uma mísola mais adiante, cacos de presenças de excepção que não resistiram ao embate da vulgaridade. A pobreza do solo, a aspereza do clima e a configuração moral e mental do habitante não consentiram nunca nem os vagares da criação gratuita, nem os ócios da sua fruição. E é das coisas desconsoladas verificar que não aparece nas feiras da região um barro colorido, uma canga entalhada, um avental bordado. Tudo é neutro como as pedras da serra, a que é preciso descobrir beleza na coesão dos átomos e na serenidade com que assentam no chão.
Andei sempre à roda, à roda,
E sempre à roda de ti...
Não. Não se pode fugir ao magnetismo do íman que tudo atrai e que tudo dispõe. E é justo. Se alguma coisa de verdadeiramente sério e monumental possui a Beira, é justamente a serra. Portugal tem outras mais belas e agrestes — o Gerês, por exemplo. Outras com mais incorruptibilidade — o Marão, para não ir mais longe. Outras mais luxuriantes — como Monchique. Mas nenhuma se lhe compara na maneira larga como expande a respiração, no modo aberto como desdobra o manto. Em qualquer das suas rivais a emoção que se sente é sempre um espasmo. Um frémito rápido e agudo. Na Estrela, porém, é um demorado fruir de sensações, feitas de surpresas sucessivas. Há nela as três velhas dimensões necessárias a um tamanho: comprimento, largura e altura. O Marão é um seio que entumesceu num corpo; o Gerês um espinhaço que se fendeu ao meio; Monchique um jardim suspenso. Mas a Estrela é uma expiração de pedra que o quis ser sem literatura. As irmãs são mais cenários do que realidade; ela é mais naturalidade do que artifício. Por isso apenas se lhe apreende a grandeza tocando-a, como o tamanho de Gulliver só se descobriu quando os anões lhe escalaram o arcabouço. A Borrageira e o Pé do Cabril, do Gerês, as fragas da Ermida e a Pena Suar, do Marão, vêem-se de muito longe, como bandeiras festivas nos mastros das romarias. A Estrela, essa, guarda secretamente os ímpetos, reflectindo-se ensimesmada e discreta no espelho das suas lagoas. Somente a quem a passeia, a quem a namora duma paixão presente e esforçada, abre o coração e os tesouros. Então, numa generosidade milionária, mostra tudo. As suas Penhas Douradas, refulgentes já no nome, os seus Cântaros rebeldes a qualquer aplanação, os seus vales por onde deslizaram colossos de gelo, nos brancos tempos do quaternário. Revela, sobretudo, recantos quase secretos de mulher. Fontes duma pureza original, cascatas em que a água é um arco-íris desfeito, e conchas de granito onde se pode beber a imagem. O tempo demorou-se na solidão e no silêncio das suas lombas, e pôde construir à vontade. Abrir ruas, esculpir estátuas, rasgar gargantas, e até deixar desenhado o próprio perfil na curva de raio infinito de cada recôncavo.
Perder-se por ela a cabo num dia de neve ou de sol, quando as fragas são fofas ou há flores entre o cervum, é das coisas inolvidáveis que podem acontecer a alguém. Para lá da certeza dum refúgio amplo e seguro, onde não chega a poeira da pequenez nem o ar corrompido da podridão, o peregrino esbarra a cada momento com a figuração do homem que desejaria ser, simples, livre e feliz. Um homem de pau e manta, a guardar um rebanho, — criatura ainda impoluta do pecado original, para quem a vida não é nem suplício nem degradação, mas um contínuo reencontro com a natureza, no que ela tem de eternamente casto, exaltante e purificador.
Miguel Torga, PORTUGAL, Coimbra 1967
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